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O que nós temos por verdade é apenas a mais provável, ou a mais improvável de várias probabilidades. Assim, qualquer indivíduo, por normalmente certo que no assunto se sinta, não pode jurar, com absoluta consciência intelectual, não só de que tal indivíduo do sexo masculino é seu pai, mas também de que tal outro, do sexo feminino, é sua mãe. Para crer que quem é tido por seu pai o é realmente, o mais que ele tem é, não lhe constando que sua mãe tivesse traído o marido, o julgue que não o fez nunca. Para ter certeza, intelectual, de que tal indivíduo é pai de outro era preciso ter assistido ao acto da fundação, ter inspeccionado de perto a fecundidade — de modo a não haver certeza □ — e ainda assim restava a ideia de paternidade metafisicamente considerada para mais embrulhar o assunto. Quanto a um indivíduo não poder afirmar que tal mulher é sua mãe, quem lhe diz que, parido por ela um ente masculino, este não foi substituído por outro parido, pela ama por exemplo, e por hipótese? O mais que se pode dizer é que isto é improvável — ou antes, que é menos provável que a hipótese contrária. Mas certeza certa propriamente não a há.
O que chamamos verdade não o é para certezas, é o que envolve uma improbabilidade menor, uma maior soma de probabilidades. Tanto basta para entreabrir a porta ao suspeitar. E uma porta entreaberta, porque não é uma porta fechada, é uma porta aberta. O suspeitar entra.
A afirmação que o mundo pode bem ser ilógico peca por querer explicar pelo «não ter explicação». Porque não pode o mundo ser ou lógico ou ilógico. E porque não outra coisa ainda que não seja nada?
Três males humanos:
O da acção.
O do pensamento.
O do sentimento — o precisar sentir qualquer coisa ante qualquer coisa.
A dúvida é a certeza de não estar certo.
Sentir talvez afirme de mais.
Trés ilusóes da acção humana:
— a do pensamento — a ilusão de explicar e resolver.
— a do sentimento — a ilusão de valorizar; ante uma coisa,
de ter de sentir qualquer coisa.
— a da vontade — de agir para qualquer coisa.
— só conhecemos as nossas absorções.
Como encontrar um motivo para agir? Um critério para pensar?
A dúvida é a certeza de não estar certo. Sentir talvez afirme de mais.
O automóvel ia desaparecendo
Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi…
Quando tenho um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não fícar sujo.
O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficávamos azuis. Não riam… A camurça fícava realmente azul: o meu carro ia passando para a camurça. Afinal, pensei, não estou limpando este carro: estou-o desfazendo.
Antes de acabar um ano, o meu carro estava metal puro: não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul.
Vi que tinha que pintar o carro de novo.
Foi então que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cábelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.
Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis com uma Caneças de duas portas ñas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.
Procurei-o e disse-lhe: «Bastos amigo, quero pintar o meu carro de gente. Quero pintá-lo de um esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e indivorciável. Com que esmalte é que o hei-de pintar?»
«Com BERRYLOID», respondeu o Bastos, «e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui magar com uma pergunta a que respondería do mesmo modo o primeiro chauffeur que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas».
«Perfeitamente…»
«Com que é que você quer pintar um carro», continuou o Bastos sem me ligar importância, «senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E, ainda por cima, fácil de aplicar… Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma virtude, e as virtudes citam-se… Vá-se embora!..»
«Bom…», disse eu.
«Isto de esmaltes de nitrocelulose», prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão, «não é um assunto de mercearia a retalho. Tem uma coisa maçadora a que se chama ciência. Sabe o que é? Mas é maçadora para quem prepara as coisas; para nós, que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegría. Este BERRYLOID é produto de longos cuidados feito no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu? Não é primeiro produto do género que apareceu, porque o ser primeiro está bem se se trata de estar numa bicha, mas não se se trata de tintas ou de coisas que metem estudo e provas. Não: nas tintas e na prática, a última palavra é que é a primeira».
«Meu caro Bastos…», disse eu.
«Só BERRYLOID», respondeu o Bastos, virando-me as costas.
«Eu quería agradecer…», prossegui.
«Traga o carro», disse o Bastos.
Levei-lhe o carro e ele pintou-o a BERRYLOID. E não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar esse esmalte de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não há nada como o BERRYLOID.
…Tanto assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele vinha já pintado a BERRYLOID. Ele aí está na base da página e no fim da minha história. Passa-se a camurça, mas é preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará, porque dura.
A minha camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os elogios dos amigos que vêem os meus carros pintados a BERRYLOID.
Um grande português ou A origem do conto do vigário
Vivía, há já não poucos anos, algures num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.
Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Senhor Vigário, tenho aqui urnas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa». O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco, regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a días tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleante de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não; e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmáo para as notas, que se via eram de cem.